quarta-feira, 6 de abril de 2011

Romã - 13


I - 13
Depois de olhar três vezes para o lado direito, outras três para o esquerdo e de verificar a retaguarda, de relance, mais umas quantas, entrou num pulo e num fôlego só. Não era muito habitual andar sozinha, tinha medo, algo que a consumia mesmo que nem sempre se apercebesse de como esses temores se apoderavam do seu estado de espírito. A caminho da estação podia jurar que via tudo em chamas, nem uma ponta dos seus cabelos negros ousava mexer, a brisa fazia-se da sua respiração marcada e esforçada. Procurou no bilhete o seu lugar e a pouco e pouco, por entre a multidão que se atolava nos corredores das carruagens, tentava desenhar uma linha de caminho até ao seu número. Já quase desesperada, ao passar por uma senhora dos seus sessenta anos, pergunta:
- Por acaso não sabe onde é que fica a casa-de-banho? Estou farta de procurar o meu lugar, mas com esta confusão e calor começo a cansar-me, acho que preciso de me refrescar…
-Oh querida, sente-se aqui ao meu lado! Ora deixe lá ver o seu bilhete… Hmm, nú-me-ro treze, número treze é aqui mesmo! Que tolinha, já deve estar para desfalecer, como é que não viu que era aqui mesmo o seu lugarzinho? Sente-se, tenho aqui chá de lima bem fresco!
“Porquê a mim? Será possível? Eu só quero um minuto de descanso…”. ­
- Muito obrigada, parece que me sinto melhor. De qualquer maneira, se me der licença vou à casa-de-banho.
E lá foi, enquanto avançava conseguia ouvir a voz da senhora, que se ia apresentando, tinha três filhos e ia ter com uma amiga de infância a França, mais especificamente ao sul de França e que estava um calor desgraçado e que a menina tinha de tomar atenção às quebras de tensão, que muito provavelmente a menina estava com uma “issolação”. Conseguiu chegar à porta do WC, por sorte tinha acabado de sair uma mãe e uma criancinha, apressou-se a entrar, antes que alguém lhe roubasse a vez. Desde miúda que detestava esperar, na sua cabeça algo começava a fervilhar quando tinha de ficar com a mãe à espera de vez para andar no baloiço, tinha mesmo chegado à conclusão de que se fartava de tudo por esta mesma razão: esperar.
No espelho reflectia-se a sua pele suada e morena, os olhos um pouco inchados, mas sempre vivos, vivos de um verde verdadeiro, as sardas aqui e ali e o cabelo mais liso do que o costume, talvez devido à secura que se fazia sentir lá fora, há já mais de quatro semanas. Molhou a cara, o pescoço, os braços e as pernas, soube-lhe tão bem esta frescura momentânea que acabou por repetir o procedimento. Atou o cabelo volumoso no alto da cabeça, tirou o bloco de notas e escreveu, “primeiro parágrafo”, depois olhou pela pequena janelinha na casa de banho e começou a sentir-se claustrofóbica, pegou na sacola e saiu. Abriu caminho, sentiu-se repugnada e revoltada quando passou por um grupo de velhos bêbedos, chegou mesmo a laçar um olhar carregado de escárnio, cujo objectivo não foi materializado, desataram-se a rir, tendo um deles caído para o chão, tamanha era a bebedeira.
Viu ao longe cinco raparigas, certamente mais novas do que ela, não muito, talvez um/dois anos, mas sim, eram certamente mais novas, pensou. Desprezava o estilo de vida que levavam, as roupas exageradamente berrantes, a chorar por atenção, os cabelos, as unhas e os rostos pintados, as gargalhadas forçadas e em alto som, procurando atingir o alvo, a alguns lugares à frente, um grupinho de rapazes, sim, sem dúvida alguma mais novos do que ela, pensou com indiferença. “São tão ridículas, não percebem nada de nada, superficiais de merda”. Sempre se achara intelectualmente superior à sua geração, não no sentido de melhor pessoa, pensava em si como um pêra que tinha amadurecido antes de tempo. E daí partiu para outra, sentou-se ao lado da senhora, que por sorte ou azar já dormitava, com a cabeça a baloiçar e a ressonar discretamente. Perdeu-se nos seus pensamentos, coisa que agora acontecia com mais frequência, conseguia perceber que passava mais de metade do seu tempo a pensar, a sonhar, a idealizar. Talvez por ter chegado a esta conclusão é que decidiu comprar o bilhete. “É um bom número o treze, não traz assim tanto azar… ou não, a virgem Maria apareceu aos pastorinhos no dia treze, que palhaçada, por que é que estou a pensar nisto”, pegou na sacola rosa salmão com aplicações verdes e amarelas, presente de uma viagem de trabalho que o pai fez a Roma, e tirou uma maçã, daquelas rijas e vermelhinhas, bem pequenas e saborosas como gostava. Deliciou-se com a maçã, enquanto observava o casal sentado mais à frente. Na casa dos trinta anos, ela loira de cabelos longos e olhos azuis, ele moreno, muito moreno, com olhos metidos para dentro, com o cabelo despenteado, com rastas emaranhadas, arremessado num apanhado no alto da cabeça, conversavam os dois sobre a viagem que iam fazer, estavam a discutir se sairiam no dia treze em Salamanca ou em Burgos, o que acabou por acender uma troca de ideias em voz alta, tão alta que alguns passageiros trocavam olhares de reprovação.
“Por que raio é que se preocupam com aquilo que não lhes diz respeito, esta gentinha… Coitados, muito provavelmente começaram a relação há pouco tempo, ainda se devem estar a adaptar um ao outro… Mas também o que é isso de se adaptarem um ao outro? Ou dá ou não dá.”, pegou no livro que tinha numa mochila maior, de Paulo Coelho, dispersou dos pensamentos sem utilidade e começou a ler.
Acordou com a senhora Ana Lúcia, que entretanto despertara do seu breve cochicho, a dar-lhe ligeiras cotoveladas no antebraço, fruto do movimento de tricotar.
- Ai lindinha, está acordada? Distraí-me menina, sabe eu e os meus pensamentos, perdemo-nos. Rematou com uma gargalhada aguda e nervosa.
“Não, é uma ilusão de óptica, os meus olhos estão abertos, a minha cara inchada, estou a mexer-me, mas não passa tudo de uma ilusão… Uau, às vezes surpreendo-me com o meu humor sarcástico”.
 – Sim, já estou acordada , adormeci enquanto lia. Por acaso não viu o meu livro? Deve-me ter caído. “Por que é que insisto em conversar e ser simpática, mais valia ter fugido para outra carruagem.”
- Está aqui minha querida, guardei-o para não se perder. Quer um pouquinho de chá de lima fresquinho? Não me diga que não tem sede, esses lábios secos estão a denunciá-la. Mais uma gargalhada aguda e forçosamente prestável.
Apressou-se a tirar o livro da mão rugosa com unhas pintada com verniz barato rosa velho brilhante, agradeceu e disse mais uma vez que não gostava de lima. E enquanto ouvia a velha murmurar entre dentes que estava farta daquele casalinho além, a loura e o “monhé”, que não tinham parado de discutir desde que o comboio arredara, levantou-se num ímpeto e dirigiu-se à zona de fumadores mais próxima.
“O que é que eu vou fazer… Okay, uma coisa é certa, não vou voltar atrás, já me embrenhei nesta decisão o suficiente, não posso desiludir-me a mim mesma. Aposto que a maior parte das pessoas neste comboio sabe o porquê desta viagem, em que estação vai sair, quem vai visitar, o que vai fazer… E eu, uma banana de vinte e dois anos, com meia dúzia de trapos na mala, a fumar um cigarro Lucky Strike, apetecível diga-se de passagem, sem ser capaz de responder a questão ‘o que é que eu estou a fazer?’”
- Desculpe, isto é seu? Alguém, que segurava um isqueiro azul com cartas de mesa sobrepostas, interrompera a sua linha de pensamento.
- É sim, obrigada. Respondeu prontamente, no seu tom mais distante.
- Vai para onde? Insistiu um jovem, alto, bem-parecido e com um sotaque discreto e quase indecifrável. – Que maneiras são as minhas… Posso saber o seu nome?
Algo a impeliu para responder e sem saber bem porquê, talvez por não se encontrar perdida nos pensamentos, ou pela primeira vez em muito tempo não racionalizar aquilo que estava a acontecer, disse:
- Violeta. Tenho de ir.
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