segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Romã - 13

Contou que os pais se conheceram no Porto, nas festas de São João, numa noite quente regada a caldo verde, bebidas e sardinha assada. A sua mãe era definitivamente a mais bela, levava um vestido branco, rendado, deixava-lhe as costas ao descoberto, o que por si só era motivo mais do que suficiente para que os copos entulhados de bebida se deixassem cair, como que por obra de nosso senhor, quando esta se passeava pelas ruas salpicadas de gente. Os seus olhos, segundo o seu pai e a sua avó, prendiam qualquer um que os fixasse por mais do que um segundo, eram como pequenas estrelas, daquelas que só aparecem às vezes mas que quando lhes botamos os olhos em cima, o sono não nos chega e ficamos noites a fio a contemplá-las apaixonadamente. Lembrou-se da exorbitância de vezes que ouvira estas palavras em tempos de meninice, sempre que chamava a avó Amélia para um beijo de boa noite, já aconchegada pelo embalar da quietude alentejana de final de dia. Mal ouvia a porta abrir, saltava que nem coelho, sentava-se na cama e com uma doçura de maturidade pedia à avó que lhe dissesse, uma vez mais, como eram os olhos da mãe Camila. Ponderou se não teria falado demais, tinha sempre cuidado com a sua boca e com o que dela saia, principalmente quando se tratava de um ouvinte desconhecido. Sem dar por isso, os seus lábios selaram-se e perdeu-se em memórias distantes do seu paradeiro físico.
- Não quero interromper o teu momento, mas parece-me que devias continuar. Gosto de te ouvir. Disse Gabriele, com uma suavidade indecifrável, capaz de mover o mais teimoso pedregulho.
- Desculpa, tenho alguma dificuldade em manter-me lúcida. Respondeu, sentido as maçãs do rosto transformadas em pequenas romãs. Era realmente acanhada, cuidara.
- Eu gosto de insanidade! Mas por favor, não me digas que fugiste de um hospício, porque desse tipo de insanidade ninguém gosta.
Sem o admitirem conscientemente, ambos sabiam que uma peculiar cumplicidade pairava sobre eles como andorinhas, daquelas que voam livremente em uníssono com o vento. Por esta mesma razão, Violeta não se deixou sucumbir às insistentes ameaças que a racionalização lhe trazia e retomou o fio do seu discurso. Regressou, assim, à noite da cidade invicta, recordando a história dos seus pais. Contou a Gabriele que a sua mãe, distraída como era, não se apercebeu que enquanto caminhava nas ruas apinhadas de gente um rapaz a olhava, hipnotizado, totalmente embevecido pela sua beleza, numa janela do segundo andar. Quem o vislumbrou, foi a sua amiga que com ela aproveitava esta noite quente de folia. E foi assim, da janela para o mundo, que o amor uniu os seus pais, ela cá em baixo, ele lá em cima e sem trocarem uma única palavra, voaram alto.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Romã - 13

Eram treze horas quando o comboio chegou a Toulouse.
A noite tinha sido longa, dormitara alguns minutos, nunca mais de vinte seguidos e quando finalmente dormia há mais de quarenta, a senhora Ana Lúcia saltitando no seu lugar, numa histeria completa, acordou-a com guinchos jubilantes de excitação. Com as mãos pequeninas e rugosas de unhas longas agarrou Violeta e disse-lhe:
- Lindinha, vou-me embora! Saio aqui em Toulose, a minha amiga Andrea mora aqui pertinho. Não a acordei por causa disso, não é? Aposto que era o que a menina achava! Não querida, acordei-a porque tenho a certeza que vai querer ficar com o meu chazinho de lima, trouxe duas garrafinhas, uma bebi-a eu, a outra fica para a menina.E não se esqueça menina, não se esqueça de ser feliz e de seguir sempre a voz que todos ouvimos se escutarmos com atenção!
E assim foi a senhora Ana Lúcia.
 Soube-lhe bem ficar sozinha, apesar da sensação momentânea de estranho conforto, pareceu-lhe que a velha durante aquele pedaço de viagem tinha conseguido descobrir algo sobre si e isso era perturbante, além disso estava a ser consumida há já algum tempo por uma sensação incompreensível. Ainda sentia algo, e já tinham passado algumas horas desde a troca de palavras com o estranho. Não conseguia decifrar o que a deixara tão incomodada, se teria sido a maneira como o rapaz a olhara, o cheiro forte e ligeiramente adocicado que dele brotava, ou se por outro lado a facilidade com que tentou comunicar com ela, indiferente à sua predisposição, coisa que raramente lhe acontecia. Não gostava da atenção, normalmente. Odiava que a destacassem, era discreta, acreditava que a sua beleza, se é que ainda podiam encontrar alguma réstia, residia no seu valor espiritual, daí que batesse em todos os pequenos colegas de infantário que a pediam em namoro e corriam atrás dos seus lindos olhos verdes. E assim persistiu esta atitude, de cada vez que mudava de escola, por causa do pai. A sua aprendizagem vinha dos quatro cantos de Portugal, o espírito livre e indomável, talvez tenha herdado da sua mãe…
- Posso? Pediu educadamente o rapaz alto e bem-parecido, apontando para o lugar vago, alguns minutos depois da senhora Ana Lúcia ter saído e mais uma vez a fazer com que Violeta perde-se o fio ao seu novelo de pensamentos soltos.
- Sim, à vontade. Respondeu ríspida e apressadamente.
Pegou no bloco de notas, pensando que tinha de se distrair, que não queria olhar para ele e muito menos queria que ele se apercebesse que a sua presença a incomodava. Começou a rabiscar nervosamente, os traços saiam-lhe tortos e decidiu arrumar o bloco quando se apercebeu que não estava a conseguir disfarçar que a presença do rapaz a deixava realmente perturbada. Sem saber bem porquê, tirou o telemóvel da sacola para ver as horas, 13:13.
- Estou a incomodá-la, não estou? Consigo perceber muito bem as pessoas, leio os movimentos, a expressão... Se quiser eu saio, vou procurar outro lugar.
- Desculpe? Não, não está. Nem consigo perceber por que razão insiste em falar comigo. Conseguiu proferir as palavras com determinação, já tinha a resposta na ponta da língua, bem afiada.
- Violeta... Que nome invulgar! Assenta-lhe na perfeição. Disse com um sorriso um tanto ou quanto provocador.
Virou a cabeça para a janela, respirou fundo, contou até dez muito pausadamente e disse:
- Ah, excelente! Agora está a chamar-me invulgar. Óptimo... A sério, posso ajudá-lo em alguma coisa?
Soltou uma gargalhada curta, agradável até, pensou Violeta, antes de insistir novamente em falar com ela.
- Gabriele.
- O quê?
- O meu nome é Gabriele.
- E o meu é Violeta.
"Oh não, outra vez, que idiota! Eu já lhe disse o meu nome. Ai..."
- Não me diga!
Trocaram o primeiro sorriso, a primeira gargalhada e os olhos soltavam pequenas faíscas de cumplicidade.
Ainda nervosa, Violeta deixara de pensar, não racionalizava, simplesmente abria a boca e deixava as palavras atropeladas fluirem, e os seus ouvidos, esses eram como flores, absorviam as palavras de Gabriele, o beija-flor. Falaram sobre ele, era Italiano, mas vivia em Portugal há treze anos, daí o ligeiro sotaque, tinha vinte e seis anos. Amava a Natureza e a sua mãe. O pai, não o conhecia. Vivia da música, a sua grande paixão, tocava seis instrumentos, o seu preferido era a voz. Tinha herdado o dom das palavras da sua mãe, do pai não voltou a falar. Contou a Violeta as aventuras em Portugal, disse-lhe que veio por causa de uma tia-avó, Deolinda, que morava na Ericeira, a mãe pedira-lhe que a ajudasse durante uns tempos, mas Gabriele deixou-se fascinar pelos cabelos salgados, pelos passeios de areia nos pés e ondas de sol, então ficou mais um ano e mais outro, até hoje, que estava de regresso a Itália, ao seu berço. Tinha saudades da mãe, do cheiro do seu abraço.
- É parecida contigo, sabes? Destemida, é assim que dizem, não é?
Corou e acenou com a cabeça afirmativamente, desviando o assunto, perguntou-lhe para onde ia. Ficou a saber que era de Bolzano, que ficava no Norte. Arrepiou-se, vivera toda a sua vida no Alentejo, o frio deixava-a desconfortável, pensou logo na possibilidade de ir com Gabriele e conhecer a sua terra. Arrependeu-se de pensar, era da racionalização que fugia, apercebeu-se momentaneamente. Ele compreendeu, não fosse ele um especialista em movimentos e expressões corporais e tal qual um miúdo de cinco anos desata a fazer perguntas, curioso e muito interessado. Para a primeira questão, Violeta não tinha resposta, mas também não podia explicar porquê. Para a segunda pergunta, a resposta saltou-lhe da boca fechada e a partir daí voltou a falar sem pensar em nada, chegando mesmo a doer-lhe a garganta de tanto palrear.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Manolo Blahnik for Tous



A convite da Tous, Manolo Blahnik recriou o famoso modelo "Campari", cuja criação data de 1994, celebrizado por Carrie Bradshaw na série televisiva O Sexo e a Cidade. Agora, este modelo está também disponível, em miniatura, num colar que tanto pode ser de ouro, como de prata com uma aplicação de diamante no lugar do botão do sapato. O que não tem muita graça, é o preço, que varia entre os 150 e os 1449 doláres, mas que é um miminho, isso é...

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Romã - 13


I - 13
Depois de olhar três vezes para o lado direito, outras três para o esquerdo e de verificar a retaguarda, de relance, mais umas quantas, entrou num pulo e num fôlego só. Não era muito habitual andar sozinha, tinha medo, algo que a consumia mesmo que nem sempre se apercebesse de como esses temores se apoderavam do seu estado de espírito. A caminho da estação podia jurar que via tudo em chamas, nem uma ponta dos seus cabelos negros ousava mexer, a brisa fazia-se da sua respiração marcada e esforçada. Procurou no bilhete o seu lugar e a pouco e pouco, por entre a multidão que se atolava nos corredores das carruagens, tentava desenhar uma linha de caminho até ao seu número. Já quase desesperada, ao passar por uma senhora dos seus sessenta anos, pergunta:
- Por acaso não sabe onde é que fica a casa-de-banho? Estou farta de procurar o meu lugar, mas com esta confusão e calor começo a cansar-me, acho que preciso de me refrescar…
-Oh querida, sente-se aqui ao meu lado! Ora deixe lá ver o seu bilhete… Hmm, nú-me-ro treze, número treze é aqui mesmo! Que tolinha, já deve estar para desfalecer, como é que não viu que era aqui mesmo o seu lugarzinho? Sente-se, tenho aqui chá de lima bem fresco!
“Porquê a mim? Será possível? Eu só quero um minuto de descanso…”. ­
- Muito obrigada, parece que me sinto melhor. De qualquer maneira, se me der licença vou à casa-de-banho.
E lá foi, enquanto avançava conseguia ouvir a voz da senhora, que se ia apresentando, tinha três filhos e ia ter com uma amiga de infância a França, mais especificamente ao sul de França e que estava um calor desgraçado e que a menina tinha de tomar atenção às quebras de tensão, que muito provavelmente a menina estava com uma “issolação”. Conseguiu chegar à porta do WC, por sorte tinha acabado de sair uma mãe e uma criancinha, apressou-se a entrar, antes que alguém lhe roubasse a vez. Desde miúda que detestava esperar, na sua cabeça algo começava a fervilhar quando tinha de ficar com a mãe à espera de vez para andar no baloiço, tinha mesmo chegado à conclusão de que se fartava de tudo por esta mesma razão: esperar.
No espelho reflectia-se a sua pele suada e morena, os olhos um pouco inchados, mas sempre vivos, vivos de um verde verdadeiro, as sardas aqui e ali e o cabelo mais liso do que o costume, talvez devido à secura que se fazia sentir lá fora, há já mais de quatro semanas. Molhou a cara, o pescoço, os braços e as pernas, soube-lhe tão bem esta frescura momentânea que acabou por repetir o procedimento. Atou o cabelo volumoso no alto da cabeça, tirou o bloco de notas e escreveu, “primeiro parágrafo”, depois olhou pela pequena janelinha na casa de banho e começou a sentir-se claustrofóbica, pegou na sacola e saiu. Abriu caminho, sentiu-se repugnada e revoltada quando passou por um grupo de velhos bêbedos, chegou mesmo a laçar um olhar carregado de escárnio, cujo objectivo não foi materializado, desataram-se a rir, tendo um deles caído para o chão, tamanha era a bebedeira.
Viu ao longe cinco raparigas, certamente mais novas do que ela, não muito, talvez um/dois anos, mas sim, eram certamente mais novas, pensou. Desprezava o estilo de vida que levavam, as roupas exageradamente berrantes, a chorar por atenção, os cabelos, as unhas e os rostos pintados, as gargalhadas forçadas e em alto som, procurando atingir o alvo, a alguns lugares à frente, um grupinho de rapazes, sim, sem dúvida alguma mais novos do que ela, pensou com indiferença. “São tão ridículas, não percebem nada de nada, superficiais de merda”. Sempre se achara intelectualmente superior à sua geração, não no sentido de melhor pessoa, pensava em si como um pêra que tinha amadurecido antes de tempo. E daí partiu para outra, sentou-se ao lado da senhora, que por sorte ou azar já dormitava, com a cabeça a baloiçar e a ressonar discretamente. Perdeu-se nos seus pensamentos, coisa que agora acontecia com mais frequência, conseguia perceber que passava mais de metade do seu tempo a pensar, a sonhar, a idealizar. Talvez por ter chegado a esta conclusão é que decidiu comprar o bilhete. “É um bom número o treze, não traz assim tanto azar… ou não, a virgem Maria apareceu aos pastorinhos no dia treze, que palhaçada, por que é que estou a pensar nisto”, pegou na sacola rosa salmão com aplicações verdes e amarelas, presente de uma viagem de trabalho que o pai fez a Roma, e tirou uma maçã, daquelas rijas e vermelhinhas, bem pequenas e saborosas como gostava. Deliciou-se com a maçã, enquanto observava o casal sentado mais à frente. Na casa dos trinta anos, ela loira de cabelos longos e olhos azuis, ele moreno, muito moreno, com olhos metidos para dentro, com o cabelo despenteado, com rastas emaranhadas, arremessado num apanhado no alto da cabeça, conversavam os dois sobre a viagem que iam fazer, estavam a discutir se sairiam no dia treze em Salamanca ou em Burgos, o que acabou por acender uma troca de ideias em voz alta, tão alta que alguns passageiros trocavam olhares de reprovação.
“Por que raio é que se preocupam com aquilo que não lhes diz respeito, esta gentinha… Coitados, muito provavelmente começaram a relação há pouco tempo, ainda se devem estar a adaptar um ao outro… Mas também o que é isso de se adaptarem um ao outro? Ou dá ou não dá.”, pegou no livro que tinha numa mochila maior, de Paulo Coelho, dispersou dos pensamentos sem utilidade e começou a ler.
Acordou com a senhora Ana Lúcia, que entretanto despertara do seu breve cochicho, a dar-lhe ligeiras cotoveladas no antebraço, fruto do movimento de tricotar.
- Ai lindinha, está acordada? Distraí-me menina, sabe eu e os meus pensamentos, perdemo-nos. Rematou com uma gargalhada aguda e nervosa.
“Não, é uma ilusão de óptica, os meus olhos estão abertos, a minha cara inchada, estou a mexer-me, mas não passa tudo de uma ilusão… Uau, às vezes surpreendo-me com o meu humor sarcástico”.
 – Sim, já estou acordada , adormeci enquanto lia. Por acaso não viu o meu livro? Deve-me ter caído. “Por que é que insisto em conversar e ser simpática, mais valia ter fugido para outra carruagem.”
- Está aqui minha querida, guardei-o para não se perder. Quer um pouquinho de chá de lima fresquinho? Não me diga que não tem sede, esses lábios secos estão a denunciá-la. Mais uma gargalhada aguda e forçosamente prestável.
Apressou-se a tirar o livro da mão rugosa com unhas pintada com verniz barato rosa velho brilhante, agradeceu e disse mais uma vez que não gostava de lima. E enquanto ouvia a velha murmurar entre dentes que estava farta daquele casalinho além, a loura e o “monhé”, que não tinham parado de discutir desde que o comboio arredara, levantou-se num ímpeto e dirigiu-se à zona de fumadores mais próxima.
“O que é que eu vou fazer… Okay, uma coisa é certa, não vou voltar atrás, já me embrenhei nesta decisão o suficiente, não posso desiludir-me a mim mesma. Aposto que a maior parte das pessoas neste comboio sabe o porquê desta viagem, em que estação vai sair, quem vai visitar, o que vai fazer… E eu, uma banana de vinte e dois anos, com meia dúzia de trapos na mala, a fumar um cigarro Lucky Strike, apetecível diga-se de passagem, sem ser capaz de responder a questão ‘o que é que eu estou a fazer?’”
- Desculpe, isto é seu? Alguém, que segurava um isqueiro azul com cartas de mesa sobrepostas, interrompera a sua linha de pensamento.
- É sim, obrigada. Respondeu prontamente, no seu tom mais distante.
- Vai para onde? Insistiu um jovem, alto, bem-parecido e com um sotaque discreto e quase indecifrável. – Que maneiras são as minhas… Posso saber o seu nome?
Algo a impeliu para responder e sem saber bem porquê, talvez por não se encontrar perdida nos pensamentos, ou pela primeira vez em muito tempo não racionalizar aquilo que estava a acontecer, disse:
- Violeta. Tenho de ir.
*