terça-feira, 23 de agosto de 2011

Romã - 13

Eram treze horas quando o comboio chegou a Toulouse.
A noite tinha sido longa, dormitara alguns minutos, nunca mais de vinte seguidos e quando finalmente dormia há mais de quarenta, a senhora Ana Lúcia saltitando no seu lugar, numa histeria completa, acordou-a com guinchos jubilantes de excitação. Com as mãos pequeninas e rugosas de unhas longas agarrou Violeta e disse-lhe:
- Lindinha, vou-me embora! Saio aqui em Toulose, a minha amiga Andrea mora aqui pertinho. Não a acordei por causa disso, não é? Aposto que era o que a menina achava! Não querida, acordei-a porque tenho a certeza que vai querer ficar com o meu chazinho de lima, trouxe duas garrafinhas, uma bebi-a eu, a outra fica para a menina.E não se esqueça menina, não se esqueça de ser feliz e de seguir sempre a voz que todos ouvimos se escutarmos com atenção!
E assim foi a senhora Ana Lúcia.
 Soube-lhe bem ficar sozinha, apesar da sensação momentânea de estranho conforto, pareceu-lhe que a velha durante aquele pedaço de viagem tinha conseguido descobrir algo sobre si e isso era perturbante, além disso estava a ser consumida há já algum tempo por uma sensação incompreensível. Ainda sentia algo, e já tinham passado algumas horas desde a troca de palavras com o estranho. Não conseguia decifrar o que a deixara tão incomodada, se teria sido a maneira como o rapaz a olhara, o cheiro forte e ligeiramente adocicado que dele brotava, ou se por outro lado a facilidade com que tentou comunicar com ela, indiferente à sua predisposição, coisa que raramente lhe acontecia. Não gostava da atenção, normalmente. Odiava que a destacassem, era discreta, acreditava que a sua beleza, se é que ainda podiam encontrar alguma réstia, residia no seu valor espiritual, daí que batesse em todos os pequenos colegas de infantário que a pediam em namoro e corriam atrás dos seus lindos olhos verdes. E assim persistiu esta atitude, de cada vez que mudava de escola, por causa do pai. A sua aprendizagem vinha dos quatro cantos de Portugal, o espírito livre e indomável, talvez tenha herdado da sua mãe…
- Posso? Pediu educadamente o rapaz alto e bem-parecido, apontando para o lugar vago, alguns minutos depois da senhora Ana Lúcia ter saído e mais uma vez a fazer com que Violeta perde-se o fio ao seu novelo de pensamentos soltos.
- Sim, à vontade. Respondeu ríspida e apressadamente.
Pegou no bloco de notas, pensando que tinha de se distrair, que não queria olhar para ele e muito menos queria que ele se apercebesse que a sua presença a incomodava. Começou a rabiscar nervosamente, os traços saiam-lhe tortos e decidiu arrumar o bloco quando se apercebeu que não estava a conseguir disfarçar que a presença do rapaz a deixava realmente perturbada. Sem saber bem porquê, tirou o telemóvel da sacola para ver as horas, 13:13.
- Estou a incomodá-la, não estou? Consigo perceber muito bem as pessoas, leio os movimentos, a expressão... Se quiser eu saio, vou procurar outro lugar.
- Desculpe? Não, não está. Nem consigo perceber por que razão insiste em falar comigo. Conseguiu proferir as palavras com determinação, já tinha a resposta na ponta da língua, bem afiada.
- Violeta... Que nome invulgar! Assenta-lhe na perfeição. Disse com um sorriso um tanto ou quanto provocador.
Virou a cabeça para a janela, respirou fundo, contou até dez muito pausadamente e disse:
- Ah, excelente! Agora está a chamar-me invulgar. Óptimo... A sério, posso ajudá-lo em alguma coisa?
Soltou uma gargalhada curta, agradável até, pensou Violeta, antes de insistir novamente em falar com ela.
- Gabriele.
- O quê?
- O meu nome é Gabriele.
- E o meu é Violeta.
"Oh não, outra vez, que idiota! Eu já lhe disse o meu nome. Ai..."
- Não me diga!
Trocaram o primeiro sorriso, a primeira gargalhada e os olhos soltavam pequenas faíscas de cumplicidade.
Ainda nervosa, Violeta deixara de pensar, não racionalizava, simplesmente abria a boca e deixava as palavras atropeladas fluirem, e os seus ouvidos, esses eram como flores, absorviam as palavras de Gabriele, o beija-flor. Falaram sobre ele, era Italiano, mas vivia em Portugal há treze anos, daí o ligeiro sotaque, tinha vinte e seis anos. Amava a Natureza e a sua mãe. O pai, não o conhecia. Vivia da música, a sua grande paixão, tocava seis instrumentos, o seu preferido era a voz. Tinha herdado o dom das palavras da sua mãe, do pai não voltou a falar. Contou a Violeta as aventuras em Portugal, disse-lhe que veio por causa de uma tia-avó, Deolinda, que morava na Ericeira, a mãe pedira-lhe que a ajudasse durante uns tempos, mas Gabriele deixou-se fascinar pelos cabelos salgados, pelos passeios de areia nos pés e ondas de sol, então ficou mais um ano e mais outro, até hoje, que estava de regresso a Itália, ao seu berço. Tinha saudades da mãe, do cheiro do seu abraço.
- É parecida contigo, sabes? Destemida, é assim que dizem, não é?
Corou e acenou com a cabeça afirmativamente, desviando o assunto, perguntou-lhe para onde ia. Ficou a saber que era de Bolzano, que ficava no Norte. Arrepiou-se, vivera toda a sua vida no Alentejo, o frio deixava-a desconfortável, pensou logo na possibilidade de ir com Gabriele e conhecer a sua terra. Arrependeu-se de pensar, era da racionalização que fugia, apercebeu-se momentaneamente. Ele compreendeu, não fosse ele um especialista em movimentos e expressões corporais e tal qual um miúdo de cinco anos desata a fazer perguntas, curioso e muito interessado. Para a primeira questão, Violeta não tinha resposta, mas também não podia explicar porquê. Para a segunda pergunta, a resposta saltou-lhe da boca fechada e a partir daí voltou a falar sem pensar em nada, chegando mesmo a doer-lhe a garganta de tanto palrear.